terça-feira, 10 de abril de 2012

A FAMÍLIA






Encontrar-se-á aqui apenas um esboço. Mas é o bastante para fazer ver que se pode ir muito longe desde que não se esqueçam as condições inferiores, que são como que as raízes da ideia. É ainda uma ideia de  Comte, muitas vezes lembrada, muito pouco seguida, que a sociologia depende da biologia, e, pela biologia, das ciências físicas e químicas. Retomando esta dupla ideia, e tendo-a tão próxima do meu tema quanto possível, estive atento em desenhar os contornos da família, essa sociedade elementar, a partir do duplo constrangimento da natureza animal e da necessidade exterior. Esta dupla condição é o que especifica as relações de esposo a esposo, de mãe a filho, de pai a filho, frequentemente consideradas pelo contrário segundo leis abstractas da sociedade dos espíritos. Falta considerar sumariamente essa sociedade dos corpos, que é a família, no seu todo, reunindo nela os avós, os pais, os filhos de todas as idades, os criados, enfim tudo o que  de humano se reúne na casa; juntando ainda, como numa penumbra,  os cunhados e as cunhadas, os tios e as tias, os primos, os amigos assíduos, enfim todos aqueles que se reúnem nos dias de festa. Tudo isso em conjunto dá um certo som, e produz um género de ideias inimitável, que o distingue de qualquer outra assembleia. Ora se se quer aqui escapar à fantasia e à anedota, é preciso olhar sem cessar para as condições inferiores, aquelas que nunca flectem.

É preciso dizer primeiro que os laços de família não são escolhidos. O amor retira em primeiro lugar o tempo de escolher; é preciso tomar o seu partido, e regular as ideias pelos afectos. Este carácter marca-se cada vez mais à medida que os filhos nascem. Não se tem filhos quando se quer, nem os filhos que se gostaria. Só o casal dos pais asseguraria já  que não se pode aqui prever, nem querer, e que é preciso aceitar. Há bem mais; uma multidão de antepassados, muitas vezes desconhecidos ou mal conhecidos, revivem na criança, e o efeito ordinário dessas influências entrecruzadas é o retorno a um tipo médio, o que faz uma individualidade invencível, sem precedente, frequentemente rebelde. Que a criança seja inferior ou superior aos seus pais, ou que ela mostre outras aptidões, de qualquer modo o espírito é humilhado, porque é preciso amar o que não se teria escolhido. A função de pensar encontra-se pois fora de lugar. A ideia de fazer o que se quer é remetida para fora, para lá das paredes. Não são  vontades que se opõem aqui às vontades, são seres. Eis por que, segundo a lógica própria das famílias, o argumento é imediatamente reportado ao carácter; assim o direito de existir, que não está em questão, anula o direito de pensar. Cada um aceita o humor do outro, o que é apenas dar-lhe espaço; donde essa grande injúria, que é a regra nas famílias, que é de tomar uma opinião como um movimento de humor. Percebe-se por que o pensamento e todos os géneros de invenção só podem encontrar aqui solidão, sem qualquer eco. Não é que um homem seja aí demasiado pouco estimado; mas ele é-o de tal maneira que  compreende que o seu próprio valor não tem nisso qualquer parte. É uma grande lisonja do sentimento subentender: “Mesmo que fosses tolo, enfermo, mutilado, irreconhecível”; é uma grande lisonja, mas que vai prontamente a uma espécie de desprezo, temível pela segurança. A contrapartida desta espécie de heroísmo é a vaidade, que vai ao ponto de julgar todo o sucesso segundo as marcas exteriores, mesmo quando é bem merecido; de modo que, passada esta fronteira da tribo, e dentro dela, todos os valores caem: um é inteligente como o outro é coxo. Esta força de igualizar é biológica; ela parece-se com esse amor de baixa qualidade, mas inquebrantável, que cada um dedica ao seu próprio corpo; ou, ainda melhor,  a essa espécie de amor que se pode imaginar que uma perna tenha pela outra. A família não pode pois trazer o génio; se ela não o desconhece, humilha-o ainda pela maneira de o honrar. Ver-se-á qualquer coisa deste conflito em "La Maison du Chat que pelote". Encontram-se também em Saint-Simon, e pintadas ao vivo, dessas famílias que se empurram todas, sem qualquer discernimento, como cada um empurra com o seu corpo como  numa assembleia. Não é que não se creia que o filho valha tanto como o pai; é bem pior; é que não se crê nada no valor de qualquer homem. O amor tem sempre grande dificuldade em não se perder pelo heroísmo de tudo aceitar.

Segundo esta ideia, compreende-se aquela política do parlamento familiar, que desce ela própria ao mais baixo, por uma espécie de ironia sem nenhuma reflexão. Enquanto que, na sociedade dos comerciantes, dos fabricantes e dos governantes, tudo é pesado conforme os reais serviços, parece naturalmente à família reunida que o favor e a sorte governam a promoção, a reputação, e mesmo a glória; e os espíritos fracos trazem toda a sua vida no exterior dos homens essa enfatuação sem estima alguma de si que tudo espera, que tudo pede, que tudo inveja, que só obtém lugares de esmola, e para quem se criam. Este género de descontentes enche todas as avenidas e tudo atrasa. Eu quis mesmo pensar que este amor cego e exigente é o que colora de favor e de reconhecimento as relações políticas, que se quereriam mais frias e calculadas, e que enfim  muitos amam a sua pátria como sabem amar, donde um género de devoção temível. É bem claro que a pátria não é exactamente uma família, do mesmo modo que um rei não é exactamente um pai, e que uma análise específica desta noção de pátria, a partir das conexões reais, seria o mais útil trabalho.

Um outro traço da família é que eu não vejo nela iguais, a não ser nas partes exteriores e anexadas. A diferença de idades entre as crianças, a extrema fraqueza e dependência de todos nos seus primeiros anos, o crescimento rápido, e mesmo por saltos, que muda sem cessar e muito a situação de cada uma, tudo exclui a ideia dum direito recíproco, sem contar que esta ideia é energicamente negada pelo sentimento; donde um regime comunista, que é aqui de natureza, que é o primeiro e sem dúvida o único regime do coração, mas que, verosimilmente, não convém às sociedades em que o cego sentimento não pode regular suficientemente as funções. Uma vez mais, é preciso dizer que a pátria não é uma família, e que os homens duma mesma nação não são realmente irmãos. Falta aqui o laço biológico, que é  só sobretudo forte dum irmão ao outro por uma comum dependência em relação aos pais, e ainda por intercessão da mãe, da substância da qual eles foram feitos. Uma metáfora não pode substituir essa unidade do tecido original. Talvez se achassem mais luzes, se, em vez de se pensar pelas semelhanças, o que é o método preguiçoso, se desenhasse em primeiro lugar todas as oposições possíveis entre a família e a sociedade. Nós temos aqui uma, que é que a família nega energicamente o direito, o que se encontra até nessas querelas de herdeiros, no momento mesmo em que a família deixa de ser um facto. As vivas paixões que se erguem então não vêm de modo nenhum dum vivo sentimento do direito, mas pelo contrário de que a reivindicação de direito é tomada como uma injúria ao sentimento.

É preciso notar uma outra oposição ainda, qualquer que seja a dificuldade que se encontre em esclarecê-la o bastante em todas as suas partes. Num círculo de seres humanos, em que as emoções, e, por reacção,  a cortesia, jogam de rosto a rosto, tudo quer descer já ao mais baixo, por que é humano que se regule o que se diz pela força do mais ignorante ou do mais tolo, como também se regule aquilo que se ousa pelos sinais do mais tímido. A despeito de todos os esforços, e depois de curtos sucessos, é preciso que a conversação desça. Este efeito é bem mais notável ainda na família, não por efeito da cortesia, que ao contrário falta sempre demasiado pela tirania dos sentimentos, mas antes porque o inferior aqui regula tudo, pelos humildes cuidados da vida, alimentação, criação, limpeza. Já se explicou como o humor é aqui melhor aceite do que a opinião; apreendemos agora a causa profunda, que é biológica; porque as necessidades dum doente, dum bebé, duma acamada, regulam aqui a conversação e as acções; e essas necessidades traduzem-se pelo humor, gritos de criança, queixumes do doente. Esse imperioso governo continua mesmo fora das crises, segundo uma polícia dos rostos, que sempre anunciam a objecção pelos sinais da dor de cabeça ou da náusea. Assim, cada um é tão fraco para propor quanto é forte para recusar. Donde um silêncio muitas vezes, e um vazio de ideias. Ora, embora seja quase impossível de explicar as causas, não é certamente para aí que tendem os pensamentos, nas sociedades mais extensas. Noto, mesmo no mais baixo grau, um ardor de admirar, de embelezar, de simplificar, que explica o sucesso dos romances vulgares, em que a vida superior, de sentimento e de pensamento, está tão bem separada das necessidades biológicas. Acrescentemos, remontando, que os bons escritores são mais lidos do que o que se crê, e que os escritores medíocres comunicam deles  sempre alguma coisa. Sobretudo o culto dos grandes homens, dos santos,  dos heróis desenvolve-se, e mesmo sem qualquer temperança, pela grande distância donde se vêem, e por uma felicidade de esquecer o peso do corpo em nós tal como neles, e de separar a alma. Esta celebração produz quase os mesmo efeitos nas sociedades que a comemoração nas famílias. Mas há esta diferença que a comemoração vai sempre ao melhor, enquanto que a celebração, sempre misturada aos dissentimentos de política, não vai quase nunca sem uma espécie de execração, injusta pela ignorância. De qualquer modo, a vida pública é o lugar da alegação e do juízo. Tudo que pleiteia, prega ou conta nos dá modelos de ideias. As estátuas e os templos persuadem ainda melhor. Todavia, a verdadeira escola dos pensamentos é a escola, outra sociedade, intermédia, que se opõe tanto à sociedade política quanto à sociedade familiar, por essa veneração à distância de vista que lhe é própria, e pela autoridade da bela linguagem. Digamos em resumo que a família, sempre um pouco selvagem, é civilizada por dois lados, seja pelo comércio e a paixão política do chefe, seja pelas Humanidades, que  ressaltam dos cadernos de criança, misturando-se aos deuses lares; e tal é a verdadeira escola da noite.

A linguagem não contribui pouco para levantar os pensamentos; ao contrário corrompe-os pela abreviação, pela queda da sintaxe, pela alusão enfim, que acaba por dispensar o sentido. E quem ouve bem os sinais vocais, numa família um pouco fechada, encontra qualquer coisa da linguagem primitiva. A linguagem dos antigos amores, os apelidos cuja origem está muitas vezes esquecida, misturam-se às articulações do bebé, ao calão da ama, ao sotaque da parentela camponesa. E essa linguagem pareceria ao visitante completamente incompreensível e estrangeira, como é, se dela se servissem para significar alguma coisa; mas este dialecto familiar parece-se com todas as línguas de uso, sempre demasiado admiradas por não exprimirem mais do que o fazem os gestos e as acções; um surdo não perderia nada disso. A linguagem familiar, como toda a linguagem, só é mantida e erguida acima da animalidade pelos poemas e orações; são estátuas sonoras. E é por essa linguagem imposta que nós formamos as nossas ideias quaisquer que elas sejam. Ouvir é uma palavra muito relevante.

A expressão de sociedade polida diz também mais do que pretende. A cortesia vai prontamente de fora para  dentro, porque ela modera as emoções e até as paixões;  prepara mesmo as ideias, por essa condição evidente de saber bem o que se diz. A imprudência própria a todo o amor é que ele recusa a cortesia como uma espécie de injúria; donde se chegaria a uma espécie de algaraviada que só exprimiria  emoções; assim, o amor tem grande necessidade dos poetas. Pelas mesmas causas, os sentimentos familiares nunca se exprimem; e, pelo contrário, o humor que é naturalmente mau, como o  uso da palavra o deixa ver o bastante, é o objecto constante das trocas, o que faz uma vida azeda e mesmo muitas vezes brutal, desde que os trabalhos e o comércio, palavra muito forte, se encontram separados da família. Daí vem que a família camponesa, em que a autoridade das coisas regula o respeito, é ordinariamente mais civilizada do que a família operária, ainda separada do trabalho pelo regime da fábrica. Donde se podem prever grandes consequências para a religião e os costumes, se, como se deve supor em todo o estudo de fisiologia, é a regra que faz o deus. Toda a família é civilizada também pelos amigos; mas muitas vezes aqueles que mais se amam encontram-se como que devorados pela tribo selvagem, segundo essa astúcia dos sentimentos verdadeiros, que desprezam por sistema a precaução. Uma família de comerciantes ou de políticos está melhor regulada por um género de amigos necessários, que não se amam tanto.

Mas a reacção, sobre a família, da sociedade política e da humanidade também pelas grandes obras, forma um imenso tema no qual não posso entrar. Basta que se compreenda que a família não pode regular-se a si mesma, o que significa dizer que os sentimentos mais naturais e mais fortes não bastam para nada. A segurança mesma do sentimento faz com que ele exprima muitas vezes sob aparências difíceis de vencer. Como se espera muito, a decepção toma por vezes a face do ódio; é assim que o amor paterno se volve algumas vezes numa severidade sem medida; e, em resposta, acontece que a criança dê a ver os sinais dum ódio bem armado. E, porque cada um sabe bem que a reconciliação não está longe, e até que  já está feita, o mal só é maior. Pergunta-se se a segurança de amar não se dá maiores permissões ainda do que a segurança de ser amado. Como o orgulho segue o arrebatamento nestas querelas, não acontece que a terna efusão repare alguma vez completamente os males da cólera. Pela experiência destas crises, chega-se a um silêncio que é por ele mesmo injurioso, sem contar com o aborrecimento. Uma vez que não se  descobre aqui senão um erro de forma, pode-se pensar que a bela linguagem bastaria quase a tudo, e que a leitura em comum dos poetas, à falta de orações, lembraria utilmente a todos que a improvisação mais sincera nem sempre é a mais verdadeira. De resto, o sentido das palavras importa aqui menos do que essa submissão de todo o corpo que acompanha a atenta recitação. É claro que uma oração que só pede modéstia, resignação, perdão aos outros, perdão a si, obtém por isso só o que ela pede. A Bíblia é uma estranha mistura; muitas vezes rude e inumana, impenetrável quase em toda a parte, ela não deixou menos uma impressão benéfica em milhares de famílias, pelo costume de ler e de recitar. É qualquer coisa acabar, e pode muito bem ser que a alusão estrague todas as nossas ideias, e até todos os nossos sentimentos.

Estas reflexões são muito fáceis de seguir. É útil apenas  orientá-las ainda uma vez segundo a profunda ideia de Comte, que toma a família como a escola dos sentimentos humanos. É preciso voltar a dizer, depois dele, em primeiro lugar que os sentimentos biológicos não são estranhos ao amor de outrem, o que a análise do sentimento materno basta para pôr fora de dúvida; porque o amor de si está aqui de tal modo mesclado com o amor do outro, que a devoção é nele tão espontânea como o medo ou a cólera. Os sentimentos familiares fazem ver todos  em algum grau essa violência característica, que é como de carne e de sangue. Pelo contrário, os sentimentos morais, que o homem estende tão facilmente até à humanidade inteira, são quase sempre menos eficazes contra as paixões inferiores, por que, não lhes estando tão intimamente ligados, não recebem essa força animal, única capaz de executar. Eis por que as mais altas virtudes, embora muito comuns e em todo o lado veneradas, só produzem promessas sem qualquer mudança real. Para empregar os próprios termos do nosso filósofo, nós estamos submetidos a esta condição que os nossos sentimentos mais eminentes são também naturalmente os menos eficazes. A educação dos sentimentos consiste então numa espécie de transfusão do sangue, pela passagem gradual dos sentimentos familiares aos sentimentos sociais, e enfim humanos. Neste sentido, a família é o modelo de toda a sociedade, e mesmo da humana e universal sociedade.

Em contrapartida, a família, desde que ela se fecha sobre si própria, regressa a uma espécie de selvajaria, por causas das quais quis explicar algumas. Todas as formas da cooperação a civilizam. Todavia a pátria, que se mostra tão própria a estender a dedicação real sem a enfraquecer, não nos oferece de modo nenhum essa fácil passagem à humanidade que Comte esperava dela, e até via já feita desde meados do século precedente. As causas disso são misturadas e obscuras. Todavia Pierrefeu, num livro de primeira importância, "G.Q.G. Secteur 1", notou que o principal, nesse sentimento nacional que vai tão naturalmente até ao sublime, poderia bem ser o laço de carne que une cada família àqueles que, pela necessidade, são lançados no terrível jogo da guerra. Tanto quanto esta ideia tão simples, e no entanto nova, é suficiente aqui, ela explicaria um género de violência, que os governantes sabem muito bem pôr em acção, mas que não sabem regular. Por muito difícil que seja uma tal análise, é permitido observar que nós encontramos facilmente no sentimento nacional, embora deformada, essa negação do direito que, na família, resulta da força mesma do sentimento. Assim, a guerra parece-se com as querelas fratricidas, pela cegueira e a tirania das paixões que a alimentam; mas difere delas por isto, que a despeito duma ambiciosa metáfora, não se encontra aqui entre os homens dos diferentes países essa forte e natural afeição que, nas famílias, é quase sempre um remédio suficiente para as rivalidades. É a mesma coisa da fraternidade dos povos como dos sentimentos paternais que se querem supor no monarca; estes sentimentos metafóricos exigem e não pagam. Por exemplo,  na família, os temíveis movimentos do orgulho paterno são moderados em primeiro lugar pelo laço de natureza e de presença, e também pela intercessão da mãe; por outro lado,  a revolta duma criança que se crê oprimida é temperada pelas mesmas causas, sem contar com a esperança muito segura duma libertação por efeito da idade. Não se vê nada de parecido no estado monárquico, onde se compreende, a partir destas observações e por tantas experiências, que os sentimentos não chegam. É que eles estão demasiado separados da natureza biológica. Por causas do mesmo género, embora melhor compostas ainda,  há lugar para recear que os sentimentos sejam ainda menos suficientes entre as nações. Repitamos aqui, para despertar a atenção dos investigadores,  que o afecto das famílias pelas crianças, que leva o sentimento patriótico até à mais feroz exaltação, não encontra um freio suficiente nos sentimentos de humanidade, decerto eminentes, mas comparativamente muito fracos. Assim a série: Família, Pátria, Humanidade não permite um desenvolvimento contínuo. Falta-lhe um termo, que é a Escola; e a Escola bastará talvez na sua função de civilizar, sob a condição de que  seja universal em todos os sentidos da palavra, quer dizer que  distribua amplamente e livremente a todos o tesouro das humanidades.


Alain
(Tradução de José Ames) 




ÍNDICE




ADVERTÊNCIA AO LEITOR

ONZE CAPÍTULOS SOBRE PLATÃO

I. SÓCRATES: O plebeu – Platão descendente dos reis – Maiêutica – Tremelga – O universal – A fraternidade – Sócrates moralista – Sócrates em Platão.

II. PROTÁGORAS: O céptico – O homem de Estado – O pensamento – Os cinco ossículos.

III. PARMÉNIDES: O falso platonismo – A ideia exterior – Participação – O jogo dialéctico – A pura lógica – O um e o ser.

IV. AS IDEIAS: O Hípias Maior – A ideia e a coisa – A relação - Transcendência? – A ideia e a imagem – Intuição e entendimento – A ordem das ideias – A ideia na experiência – O movimento – A inerência julgada.

V.  A CAVERNA:  O cubo e a sua sombra – Um único mundo – O erro – As sombras – Os graus do saber – A evasão – O bem – O espírito do mito – Uma história verdadeira – Geometria – A prova do entendimento – Pragmatismo.

VI. TIMEU: Os nossos sonhos – O imutável destino – Deus retirado – O Fédon – A vida futura – O imutável mundo – A matéria.

VII. ALCIBÍADES: O amor platónico – O mau companheiro – Alcibíades caído – O Banquete – O amor celeste.

VIII. CÁLICLES: O círculo dos sofistas – Resposta a Sócrates – A natureza e a lei – Sócrates diz não.

IX. GIGÉS: Os leõezinhos – O medo não é virtude – Gigés fez bem – A República – A ideia de justiça.

X. O SACO: O leão e a hidra – Desejo e cólera – As virtudes do Estado – As formas degradadas do Estado – O homem – A justiça íntima – Relação da justiça e das outras virtudes.

XI. ER: Quem julgará da felicidade? – A opinião e o saber – Deus não pune – O grande juízo – A inútil experiência – A  escolha esquecida – O eterno no presente.

NOTA SOBRE ARSITÓTELES

ESTUDO SOBRE DESCARTES

O HOMEM: Guerras e viagens – O homem de acção – O homem isolado – Severidade – Retrato.

A DÚVIDA: Dúvida voluntária – Duvidar e crer – O geómetra.

DEUS: Falsa infinidade – Grandeza de imaginação – Entendimento e juízo – Deus espírito – Duas religiões –Deus verídico.

O PEDAÇO DE CERA: O que muda e o que fica – A ideia de extensão – O átomo – A inerência – O movimento.

GEÓMETRA E FÍSICO: Reflexão e refracção – O físico geómetra –O íman – O arco íris.

O ANIMAL: O animal-máquina – A mitologia – As paixões – O inconsciente.

A UNIÃO DA ALMA E DO CORPO: A alma não é coisa – O alma e o cérebro – A glândula pineal – Sumário das paixões.

IMAGINAÇÃO, ENTENDIMENTO, VONTADE: A imaginação – Entendimento e vontade – Revista do entendimento – A vontade no pensamento – O espírito livre em Descartes.

O MÉTODO: A existência e a essência – As séries plenas – As ideias e a experiência – A evidência – A verdadeira fé.

SOBRE O TRATADO DAS PAIXÕES: O escravo do homem – Conselhos à princesa Elisabeth – Descartes, médico dele mesmo.

O HOMEM-MÁQUINA: Os espíritos animais – A glândula pineal – Os traços no corpo – A mecânica do corpo – O inconsciente.

AS PAIXÕES DA ALMA: As paixões são pensamentos – Sobre a admiração – A ligação das paixões ao corpo – Cartas à princesa Elisabeth e a Chanut – Amor e ódio.

A GENEROSIDADE: O livre arbítrio – O herói – A mística racional – A força do espírito.

REMÉDIO PARA AS PAIXÕES: Poder do homem sobre o seu próprio corpo – Sobre  os seus pensamentos – Amar vale mais do que odiar – Que todas as paixões são boas.

HEGEL

A LÓGICA: A história da filosofia – Contradições – Relação da lógica hegeliana aos nossos pensamentos – Ser, não-ser e devir – Sentido duma metafísica do devir – A dialéctica hegeliana – Hegel e Hamelin – Da qualidade à quantidade – Monadismo e Hegelianismo – Do ser à essência – O fenómeno – O vazio da essência – Kant e Hegel – O exterior e o interior – Passagem à noção – Juízo segundo a noção – Silogismo segundo a noção - Relação verdadeira do sujeito ao atributo – Sócrates corajoso – Passagem à natureza – Aristóteles, Hegel e Marx.

A FILOSOFIA DA NATUREZA: O espírito na natureza – Hegel e Goethe – A natureza mecânica – Física e Química – A vida – O organismo – A plante e o animal – A sensibilidade – A falta e o desejo – A reprodução e a morte.

A FILOSOFIA DO ESPÍRITO: Sentido duma filosofia da natureza – Princípio da filosofia do espírito – Divisões.

O ESPÍRITO SUBJECTIVO: A alma profética – O humor e o génio – Loucura e hábito – Passagem à consciência – Consciência infeliz – A história hegeliana – O entendimento no objecto – Posição de Kant – Passagem à consciência de si – O egoísmo destruidor – O reconhecimento e o combate – Senhor e escravo – A psicologia – A insuficiência da psicologia.

O ESPÍRITO OBJECTIVO: O espírito na obra – O Estado verdadeiro – Exemplo tirado da pena - Hegel e Comte – O direito como moralidade existente – Propriedade e contrato – O direito abstracto – A fraude – O crime – A moralidade pura – a moralidade social – O amor – O casamento – A sociedade civil – O Estado – A história do mundo – A dialéctica materialista.

O ESPÍRITO ABSOLUTO

A ARTE:  A noção e a ideia – A arte simbólica e a arte romântica – A arte clássica, como mediação – Hegel e o panteísmo – Arquitectura – Escultura – Pintura – Música e poesia.

A RELIGIÃO: Da arte à religião – A lógica na história – Dialéctica da religião – A religião verdadeira – História das religiões – A religião como história.

A FILOSOFIA

AUGUSTO COMTE

I. O FILÓSOFO: Clotilde de Vaux – Doença mental – O busto – Nova religião – Poder espiritual – Culto positivista – O positivismo e a guerra.

II. O SISTEMA DAS CIÊNCIAS: Os métodos – Cultura positiva – A matemática – As séries – Relação da matemática à astronomia – Astronomia – Físico-química – Biologia – Sociologia – Relação da sociologia às ciências – Moral e sociologia – A cultura enciclopédica – As hipóteses – O materialismo – Tirania da química sobre a biologia – A lógica real – Contributo das diversas ciências.

III. A LEI SOCIOLÓGICA DOS TRÊS ESTADOS: Império da sociologia – História sociológica das ciências – Hiparco e Kepler – A humanidade – As superstições – A astrologia – Os números sagrados – A biologia Metafísica – A comemoração -  As pretensas sociedades animais – Política teológica – Sociologia positiva – O estado teológico – A Grécia e Roma – O monoteísmo – A feudalidade – Reabilitação da Idade Média – Spinoza – Estado metafísico – O regime positivo – O positivismo construtor.

IV. O ESPÍRITO POSITIVO: A matemática – O preconceito dedutivo – Kepler místico – Curso popular de astronomia – Curiosidades astronómicas – A moral – Disciplina do sentimento – O amor da verdade – Utilidade das ciências – Educação enciclopédica – A idade metafísica – O espírito sociológico – Dinâmica e estática social.

V. PSICOLOGIA POSITIVA: A família, escola de psicologia – A psicologia individual – A psicologia na história – A nossa longa infância – A inteligência separada – Quadro das funções mentais – O sistema cerebral – A afectividade – As funções intelectuais.

VI. ORDEM E PROGRESSO: A história positiva – Condições do progresso – Necessidade biológica – A feudalidade – Condições da ordem – A ordem militar – A Idade Média – O poder espiritual – O progresso, desenvolvimento da ordem – Variações compatíveis com as leis estáveis – O poder humano – A liberdade real – Broussais – Estática social – Dinâmica social.

VII. MORAL SOCIOLÓGICA: A Virgem-Mãe – Individualismo – Contrato social – Uma sociologia da família.

SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA

O CASAL: O amor – O casamento – O amor e o direito – A obediência – O governo doméstico – Os dois sexos – O sexo activo – O pensamento feminino – A forma humana . A casa – O juízo maternal – O poder espiritual – A guerra, acção masculina – O poder feminino – A acção e o pensamento – O amor amadurecido - A fé – A harmonia – Stendhal e Balzac – As humanidades – A inteligência no casal.

A MÃE E A CRIANÇA: A criança reguladora – O amor conjugal – A união real – Divórcio impossível – O juramento – Graça da criança – O amor de si – O amor de outrem – O egoísmo – O Menino-Deus – O amor feminino – O reconhecimento.

O PAI: O trabalho – Puerilidades – Tagarelice – O governo e a opinião – Conversações – A amizade – Pai e filho – O pai professor – A escola e a família – Caridade – A arte das mães – Filho e mãe – Piedade filial – Comemoração – Os mortos governam – Eugénia Grandet.

A FAMÍLIA: O parentesco – Os caracteres – A família e o génio – O parlamento familiar – Pátria e família – Comunismo – Fraternidade – A família e o direito – A cortesia – O humor – Leituras – A escola – A linguagem – Cortesia moderadora – Família camponesa e operária – Os sentimentos – Querelas – A bela linguagem – A Bíblia – A escola dos sentimentos – Sentimentos eminentes fracos – As paixões na guerra – A humanidade.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O PAI




Deus Pai, é em primeiro lugar uma espantosa metáfora. O pai, é a força encadeada por si, melhor, pela sua extensão; é o conjunto das coisas que pesam, e uma severidade dos factos consumados. Todo o interior, a mãe, as crianças, as próprias coisas, exprimem os hábitos e os afectos, o recomeço, a suficiência; tudo anuncia que amanhã se parecerá com hoje. Mas o pai, quer seja ministro,  motorista, ou lenhador, fez o seu sulco no mundo, sulco que é a sua jornada, em que  encontrou  e mudou mil acções, sem contar as coisas que não estavam na sua vontade. Esta grande fricção é o que faz o peso do trabalho e o preço do tempo. Só há atrasos no mundo dos trabalhos, congestionamentos e tumulto, como se vê nas encruzilhadas das grandes cidades; e que encruzilhadas as que um ministro tem à sua guarda! Mas essa paz dos campos, também é muito enganadora, porque é preciso sempre esperar, nessa marcha cerrada das causas que não se apressam nunca. Na verdade, cada pequena causa arrasta o mundo inteiro; assim é preciso esperar que aquela grande chuvada seque. O mundo não se governa como essa casa limpa, tão bem fechada. Aqui o trabalho é regulado segundo o homem, e cada um sabe logo o que tem de fazer; por isso o governo aí é fácil. O outro governo, que se vem sentar à mesa familiar, é como que estranho e revestido de necessidade. Este olhar dirige-se para o longe e através das paredes, recusando sempre considerar aquilo que agrada. A criança, cuja situação é a de tudo obter pela súplica, acredita naturalmente que se lhe recusam alguma coisa, é porque não gostam dela o suficiente; esta política pueril é sem dúvida o que o homem compreende menos no mundo. Resta um pouco dessa puerilidade na mulher, por isto que no seu governo próprio ela acusa sempre, e justificadamente, a negligência e a má vontade. A essa oferenda, a essa promessa, a essas esperanças, o homem  não pode responder; a sua política própria é a de nunca lhes responder; a sua missão não é agradar. Se ele o ignora, é porque permanece criança; isso pode encontrar-se no caso em que a existência é assegurada sem trabalho, ou depende somente do favor; mas são casos raros, e mesmo abstractos, não duráveis. Uma das causas então, que fazem que o espírito familiar se perca em fracos juízos e em loucas esperanças, é sempre que o trabalho e os serviços, na fricção do mundo, são tidos em muito pouca conta, e que os sucessos e os reversos são unicamente atribuídos a preferências do coração ou do humor, segundo o método das crianças. Nos casos normais, o pai é como o piloto que olha ao longe e que não se preocupa com as tagarelices. É preciso chamar tagarelice a esse género de conversação vazio e agradável, em que as simpatias, as antipatias, os movimentos do coração humano, as singularidades do carácter e do humor, são o objecto principal. Há assim duas histórias; uma que é feminina e anedótica, em que tudo depende finalmente de agradar ou desagradar; a outra que é masculina, em que tudo depende dos trabalhos e dos serviços. O historiador engana-se aí facilmente se faz profissão de lisonjear. Mas o homem do comum, quer esteja colocado alto ou baixo, vive necessariamente nos trabalhos e pelos trabalhos; ele dificilmente suporta os planos e os projectos que não têm lugar. Talvez se irrite com uma reivindicação justa, e que só pretende ser justa, mais do que com qualquer outra coisa; porque é penoso recusar aquilo que se gostaria de conceder. Enfim, ele é governo por traços como este; ele é o poder. Exerce essa ingrata função, sempre mal compreendida, que não tem o direito de amar, nem de agradar, e que carrega o fardo de querer sempre sem nunca escolher. Por essa oposição de natureza entre o governo e a opinião, a paz do casal estaria muitas vezes ameaçada, e está-o com efeito sempre um pouco. Felizmente a experiência mostra que o amor verdadeiro faz aqui milagre. Por um lado, o homem  facilmente dá audiência ao arrazoado feminino que, é verdade, está sempre um pouco ao lado das verdadeiras causas, mas que, em contrapartida,  alegra o trabalho masculino por picantes observações sobre os caracteres; e é por aí que o homem se interessa pelo homem. Por outro lado, a mulher dá-se primeiro como um respeito de religião pelo trabalho masculino e, muitas vezes, consegue desenredar alguma coisa dos interesses reais e das dificuldades reais. Esta troca do romanesco e do positivo, numa confiança plena, e em que cada um sabe descobrir as marcas de amor em cada palavra, explica algumas conversas intermináveis e deliciosas, e a feliz passagem do amor selvagem à mais bela amizade.

Esta facilidade não se encontra a mesma nas relações entre o pai e o filho. A criança encontra-se mais afastada do pai do que da mãe pelos pensamentos; sem contar que o sentimento natural é aqui menos directo, menos forte, menos apoiado nessa harmonia dos movimentos que é a sequência duma existência biológica primeiro rigorosamente indivisível. É preciso dizer também que os trabalhos do pai o afastam da criança de qualquer modo, ao passo que o trabalho próprio da mãe a aproxima da criança, primeiro materialmente, o que é muito; também em espírito, pois que a primeira atenção da mãe é de adivinhar o que quer exprimir o bebé. O pai acha-se portanto um pouco estranho aos seus filhos. Ele é-o sem dúvida ainda mais relativamente aos filhos varões à medida que crescem; porque  a lei do homem, pela necessidade do trabalho, é que ele esqueça e apague continuamente a sua própria infância: e até, tanto quanto dela conserve a lembrança, pensará naturalmente em todos esses erros do espírito romanesco, relativos ao favor, à ocasião, à sorte, e quererá que o seu filho deles se afaste. Mas a marcha das idades não depende das vontades, e a experiência da idade madura não pode ser compreendida pela adolescência. Um dos traços do pai é que ele gostaria que o seu filho fosse tão exacto, tão sério, tão positivo como ele mesmo.

Esta observação explica já um paradoxo bastante forte, que consiste nisto que o pai não sabe instruir o filho. Todavia, para esclarecer um pouco melhor esta difícil questão, é preciso contar com os sentimentos vivos, que facilmente tiranizam, como diz Aristóteles. As esperanças dum pai são belas e tocantes; ele revê-se no seu filho, de novo rico em juventude e futuro; aquilo que não soube fazer, o seu filho o fará. Ele quer, portanto, ganhar tempo sobre a idade; não compreende a falta, porque compara o seu filho consigo mesmo, não com os jovens da mesma idade. O professor tem sobre o pai esta vantagem que ele julga as faltas por comparação com muitas outras crianças e jovens;  sabe o que se pode exigir, esperar, desejar de cada idade. Ele espera sem impaciência esses progressos súbitos e miraculosos que a natureza prepara, nesse crescimento rápido. Mas o professor em todos os graus tem ainda uma outra vantagem, que é a de que ele não ama os seus alunos, nem de longe, como amaria os seus próprios filhos; assim, não esperando também muito dos seus corações, não dá à ligeireza da idade as cores negras da ingratidão; ora é o que o pai nunca deixa de fazer, tomando todo o trabalho, toda a atenção, como medida do afecto, o que faz dramas, e reconciliações ainda mais prejudiciais aos estudos.

O filho, pelo seu lado, nunca deixa de aplicar, em presença do poder paterno, a política dos afectos, procurando sempre as provas do coração, o que leva muitas vezes a observar até que ponto se pode desagradar. Porque ele ama, porque se sente amado, quer vencer a severidade por outros meios que não os do trabalho; se não o consegue, irrita-se, e logo cai num verdadeiro desespero, cujas marcas são naturalmente ambíguas. Só na escola os trabalhos são pacientes, sem paixões vivas, e as faltas são pesadas segundo a idade e sem cólera verdadeira. Esta oposição entre a escola e a família dá um grande tema, e bastante novo. Eu gostaria de mostrar somente por algumas notas que os laços de sentimento entre o pai e os filhos não se formam facilmente sem a intercessão da mãe. È preciso aqui notar uma dupla imitação. O pai imita naturalmente os sentimentos da mãe, já que a felicidade da mãe é também a sua. Acaba, conforme o amor que sente por ela, por admirar quando ela admira, por perdoar quando ela perdoa, e é por aí  que de início ele aprende a amar os seus filhos como é preciso e segundo a verdadeira caridade, supondo sempre o melhor, e, por essa esperança, fazendo que seja. Não que ele atinja alguma vez essa arte de chocar que é a arte das mães, e que, por uma paciência e uma confiança incomparáveis, educa o bebé até à linguagem, até às primeiras ideias, até às primeiras virtudes. Agora devo citar uma das mais belas fórmulas de Comte, e das menos conhecidas: “Censurando o amor de ser muitas vezes cego, esquece-se que o ódio o é muito mais, e num grau muito mais funesto.” O facto dos moralistas masculinos não terem sabido dominar aqui um lugar comum bastante fraco mostra bem que o espírito do homem depressa encontraria os seus limites perante a infância, se o exemplo e o contágio do amor materno não viesse esclarecê-lo; mas insuficiente luz, como eu dizia, se o sentimento se limita a agir, sem nunca se exprimir.

Por outro lado, o filho imita naturalmente os sentimentos da mãe, sobretudo na primeira idade; e, tanto quanto a mãe dá provas de respeito, de obediência, de amor em relação ao chefe temporal, a criança forma sentimentos do mesmo género, que se compõem de seguida com a ambição que tem de ser homem, formando uma bela mescla, e uma admiração que nada pode desviar. Todavia, se a este sentimento faltasse  a força, dever-se-ia pensar que ao amor conjugal faltaria também. De resto, os sentimentos entrelaçam-se e reagem uns com os outros de mil maneiras; porque acontece que a mãe está mais atenta em marcar o respeito pelo pai, pela ideia de formar as crianças à obediência; e a astúcia que encontra a mãe, de sempre comandar em nome do pai, é mais do que hábil, é bela.

É preciso notar, a respeito da piedade filial, que ela é a fonte de toda a virtude e para toda a vida; por essa religião natural que se chama comemoração; mas tenho de me limitar a esboçar somente esta grande ideia. De facto, pela diferença de idades, por essa situação de chefe temporal, sempre ingrata, pois que se comanda então segundo a necessidade, não segundo os sentimentos, e enfim de acordo com essa severa impaciência que é própria do pai, o filho não se encontra muitas vezes em condições de admirar conforme gostaria. As fraquezas da idade contribuem ainda para deformar essa bela imagem que a criança se faz primeiro do seu pai. A morte tem o privilégio de repor todos os sentimentos  no seu primeiro estado. Hegel diz que pela morte começa a vida do espírito; isso pode entender-se em mais de um sentido; pelo menos, eu percebo aqui como se forma a piedade pela ideia. A imagem miserável estando apagada, o antigo sentimento de veneração, pelo qual a criança cresceu, reencontra enfim o seu objecto, e faz entrar a ideia na existência pelos contos, ou recordações compostas, que são propriamente lendárias. Por este belo trabalho, o filho devolve aos seus pais esse imenso crédito que recebeu, Da mesma maneira que eles supunham na criança todas as virtudes, e delas espiavam todos os sinais, todavia sem serem senhores dessa existência em desenvolvimento a ponto de não ficarem desiludidos, ou pelos menos de não serem chamados à razão, do mesmo modo, a criança tornada homem empreende também ela um culto, mas com pleno sucesso, pela morte do deus. Diz-se que o tempo é o irreparável; isso é verdadeiro do tempo próximo e que acaba de passar; isso é verdade quando a causa pesa ainda nos nossos assuntos; isso é verdade, tanto quanto se lê o passado imediato nos seus efeitos; mas quando se lê no seu próprio espírito o passado já longínquo, quando a existência já recobriu os antigos factos como por uma maré, então é preciso dizer, pelo contrário, que o passado é reparável segundo o sentimento, de modo que não existe no mundo filho ou filha que não se represente enfim os seus pais mais dignos, mais íntegros, mais heróis do que eles foram. Donde veio, pelo concerto da história, esse preconceito das famílias ilustres, e esse peso do nome, sempre difícil de carregar. Nós nunca queremos crer que os nossos predecessores foram servis, incoerentes, medíocres e sempre faltando à ideia, como nós fazemos no nosso segredo. Este preconceito nunca é tão forte como quando é sustentado pela piedade filial, e sobretudo a partir do momento em que se lamenta em vão não  ter sido melhor defendida. Estes modelos que formamos são as nossas mais naturais ideias, e talvez as únicas. Os efeitos deste culto estão profundamente escondidos em cada um. O que se mostra nos comuns discursos respeita aos grandes homens, e encontra-se purificado, mas abstracto e menos eficaz. Como é que cada um interpreta recordações nítidas e inapagáveis, como é que traços de juízo, de firmeza, de finura, de grandeza de alma são desenhados no fim, a partir de testemunhos medíocres e pior do que medíocres, isso raramente é sabido; de qualquer modo, em todo o homem essas ideias de contorno humano são os seus deuses domésticos; o seu pensamento real não é mais do que oração a eles e invocação deles; digo mesmo, o filho do usurário, talvez o próprio usurário; apesar disso, ele seguirá alguma humilde regra acima do acontecimento, e alguma prudência de religião. O dia em que Eugénia Grandet, morto o seu pai, diz por sua vez e no mesmo tom que ele: “Nós veremos isso”, alguma coisa da avareza estava já salva, alguma coisa de preciso e de forte, que começou então a existir, uma virtude sem nome, muito próxima da natureza, e própria a regulá-la. É nesse sentido que Comte entende essa frase célebre e muitas vezes mal compreendida, de que os mortos governam os vivos. Não está aqui a hereditariedade de natureza; bem antes é o remédio para ela.


Alain
(Tradução de José Ames)





quinta-feira, 5 de abril de 2012

A MÃE E A CRIANÇA




Eis agora o verdadeiro casal, e o modelo de toda a sociedade. Primeiro por isto que a criança é verdadeiramente, sem nenhuma metáfora, a união dos esposos que desceu das regiões da ideia, e que  chegou à existência. A existência dispensa razões; assim, por muito divididos que estejam o pai e a mãe, e sempre por razões, pois que toda a querela tem razões, não é menos verdadeiro que as duas naturezas se acordam nessa criança, e por essa união  reencontram provisão de vida. Essa forte harmonia da criança, em que cada um dos dois reconhece o outro misturado consigo, ambos inseparáveis, não aconselha apenas o acordo, ela mostra-o feito e em desenvolvimento, de maneira que a deliberação, se se deve continuar ou não, é desfeita pela necessidade, que desenvolve de dia para dia em vez de deliberar. A atenção do casal inicial encontra-se assim deslocada, e a sua vontade comum a trabalhar; donde uma urgência em a seguir e de algum modo pilotar, embarcada que está sem regresso possível, o que o crescimento da criança representa, recobrindo cada dia de esquecimento e de perdão as experiências da véspera.

Toda a obra em desenvolvimento, como uma fábrica, um comércio, uma propriedade agrícola, tem esse privilégio de extinguir as estéreis deliberações sobre o que poderia ter sido, e até sobre o que é. Porque a existência não espera. E a vontade encontra enfim a sua verdadeira aplicação por uma impossibilidade de escolher e uma intimação a continuar. Toda a obra realiza portanto o desenvolvimento daquele que a faz, e revela-o a ele mesmo dum modo totalmente diferente do que o pode fazer a meditação sobre si, sempre ambígua, sempre recriminatória. É o que se observa na obra do artista; porque, afastando outras invenções, ela solicita a verdadeira invenção, que salva o que é feito. Todavia, a obra de arte algumas vezes é corrigida demasiado depressa, e algumas vezes destruída, o que se apreende no trabalho do barro; o mármore do estatuário defende-se melhor, e recondu-lo melhor a si mesmo; o edifício ainda melhor. Quanto mais o artista é artesão, melhor ele se salva. Quanto mais também a arte é tomada da natureza, os trabalhos, os contratos, as estações, melhor ela sustenta o querer. Todas as grandes obras, de indústria, de comércio, de arroteamento, formaram assim grandes caracteres, pela obrigação de perseverar. Bastam estas observações resumidas para fazer compreender que a criança é a obra por excelência, e entre todas benéfica por esse maravilhoso crescimento que não espera. Os pensamentos reais do casal são remetidos sempre para esse objecto, por essa experiência em curso, e que não se pode recusar. O amor conjugal é agora um facto; a vida em comum é um vivo. A união dos corações só é indissolúvel se se quiser; mas a união real, pela criança, é indissolúvel; sobre isso pelo menos é preciso tomar partido. O casamento está feito; ele não pode ser desfeito senão pela destruição das duas naturezas misturadas. Pela criança o divórcio é julgado, e é julgado impossível. Cada um o sente bem pelos efeitos; mas a verdade escondida nesses efeitos é que os esposos não podem aqui partilhar o que trouxeram, nem retirar cada um da criança o que lá puseram. É um facto; e é qualquer coisa um facto. O casamento sem filhos não é ainda um facto; é só uma ideia, que é preciso salvar pelo juramento. E o que é o juramento, senão o mais belo esforço humano para transformar a ideia em facto, e apoiar o sentimento  no irrevogável? Se é verdadeiro dizer que só o juramento desenvolve o amor, pela obrigação de compreender, de perdoar, de elevar e elevar-se, quanto mais evidentemente a existência da criança, que está fora  de deliberação, não faz encontrar a cada um dos esposos essas razões de perseverança, que são, em todo o ser humano, o melhor de si, e o único meio de descobrir o que  é verdadeiro de si! Aqui se mostra a reacção da criança sobre o casal; ideia imensa, que não se pode desenvolver o suficiente. Mas é preciso primeiro esclarecer a outra relação, a maravilha humana, o modelo e a fonte ao mesmo tempo de todos os sentimento humanos.

O amor maternal, e essa graça pela qual a criança responde primeiro, é o único amor que é plenamente natural, porque os dois seres fazem de início apenas um. A vida estritamente e intimamente comum, a lenta formação de um no próprio seio do outro, enfim, essas condições primeiramente animais, fazem aqui uma sociedade incomparável, que não visa formar de dois seres um, mas pelo contrário de um dois. O apego a si não se distingue primeiro do amor que se tem pelo outro. Comte disse sobre isso o essencial. Primeiro, que o amor de si, que mal é amor, é um sentimento forte, e tão profundamente natural que não se  pode recusá-lo sem recusar viver. Em seguida, que o amor de outrem, tomado abstractamente como um dever universalmente reconhecido, como uma perfeição em todo o lado venerada, é natural também,  como a sociedade é natural, mas é também sempre mais fraco do que se gostaria de admitir, em comparação com esse poderoso instinto que nos prende ao nosso próprio ser,  e que nos intima tão violentamente  a conservá-lo. Felizmente a natureza mostra-nos um caminho que conduz de se amar a si  a amar o seu semelhante. Já o amor conjugal, digamos simplesmente amor, oferece esse carácter biológico que faz, pelas repercussões do desejo no animal pensante, que a felicidade de um dependa imediatamente da felicidade do outro, e até não se possa mais dela separar logo que os sinais mágicos voam como flechas entre um e  outro. O egoísmo aqui comunica ao amor essa força do sangue de que a sublime ideia se encontra de início desprovida. Temos de aprender a amar; e a experiência do amor agarra-se-nos ao corpo, o que dá alimento aos mais generosos pensamentos. Mas essa preparação não está ainda suficientemente próxima de nós. O amor maternal abre uma comunicação mais directa entre o selvagem amor de si e o sublime amor que nunca escolhe e que nunca tem a perdoar.

Aqui as ideias comprimem-se. Não se pode esgotar este imenso assunto. Pelo menos, ele se acha todo reunido nesse mito da Virgem Mãe e do Menino Deus, nesse culto espontâneo bem mais clarividente do que toda a teologia, nas suas inumeráveis imagens em que os pintores e os escultores representaram sem se cansar essa atenção da mãe, que é adoração, e essa confiança infantil que, pelo movimento mais livre possível, se lança no seu próprio ser e nele se esconde. Aqui todas as perfeições do amor; porque ele não escolhe nem sequer pensa em escolher, mas antes deseja e espera; bem melhor, ele ajuda; não cessa de ajudar; e esse outro, que não se sabe o que será, da sua substância alimenta-o todo, regozijando-se com os menores progressos, adorando os menores sinais de liberdade e de força, por de mais recompensado em ver crescer o outro e em o ver feliz. Decerto são apenas momentos; o humor sempre resmunga, e a natureza nunca basta; em nenhum caso ela acompanha melhor a boa vontade. Por isso, há qualquer coisa de maternal em todo o amor feminino, e, por imitação, em todo o amor; por recordação também, pois que é da mãe que todos nós aprendemos a amar em primeiro lugar.

A criança recebe primeiro e sempre mais do que aquilo que dá. Mas esta condição não rebaixa em nada a piedade filial; porque o homem sendo feito de tal maneira que gosta mais de dar do que receber, é uma grande parte da educação do coração aprender a receber;  e essa outra generosidade, de que fizemos a virtude de reconhecimento, importa ainda mais do que a primeira em toda a sociedade. A criança aprende em primeiro lugar o mais perfeito reconhecimento; porque é primeiro por ser próspero e feliz, é primeiro por ser forte, que diz obrigado; o reconhecimento na sua origem nega a humilhação. Donde tiraremos lições sem fim, para a nossa existência difícil. O livro Dos Benefícios, que seria preciso ainda escrever e de novo escrever, deveria começar e recomeçar por uma fisiologia da criança sentada no côncavo do braço maternal; por onde se veria que a falta do ingrato é sempre e somente de não ser feliz, e que a perfeição do benefício é de tornar aquele que o recebe  mais livre, mais forte, menos dependente do que era. Os menores movimentos da criança, tantas vezes representados pelos maiores pintores, exprimem essa ideia e mil outras; donde só quero reter esta, porque  é muitas vezes esquecida, é que não há melhor maneira de responder a todo o amor como a toda a amizade, nem mesmo outro modo senão ser feliz; e tal é a nuança que, na graça, se acrescenta ao reconhecimento.

A mãe e o seu filho são a perfeição dessa sociedade natural; os nossos mitos aqui exprimem tudo, e gostaria de se dizer mais do que tudo, por essa imagem audaciosa do menino Deus, e essa nuança de respeito na mãe que faz ressoar o outro amor com esse, trazendo como que ao centro do conselho aquilo que faz a sua invencível força, e que é a vontade de obediência. O pequeno homem é já aquele que terá o pesado fardo de ser forte, o que é de qualquer modo mandar obedecendo. À partida, o coração feminino perdoa-lhe todas essas guerras que  fará, e mesmo o tiro de canhão a mais, pelo qual a força se assina. Há outras nuanças na sociedade duma mãe e da sua filha; menos cuidados talvez, por uma familiaridade de deveres e provas; em contrapartida,  um  entendimento de finura, uma mais íntima aliança, e um governo também mais seguro.


Alain
(Tradução de José Ames)